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O livro dos sons de Joana Gama.

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Diz-se isto de muitos artistas. Neste caso é verdade. A Joana Gama é um caso raro. É uma pianista com a versatilidade, abertura e disponibilidade dos grandes. A sua formação é clássica, mas quando ainda estava a acabar a sua formação, percebeu que poderia ir para outros sítios. Foi num desses “desvios” que a conhecemos, em “Quest”, o seu primeiro álbum com Luís Fernandes.

Há quem a conheça pelas maratonas de Satie, outros precisamente por esses desvios. Alguns por tudo. “O Livro Dos Sons”, de Hans Otte, que hoje apresenta na Culturgest, pelas 21:00, tem a virtude de ser um trabalho que pode comunicar com os seus diferentes públicos. É uma peça lindíssima, de um compositor algo desconhecido entre nós. Estivemos à conversa com a Joana precisamente sobre isso. O que esperar deste “O Livro Dos Sons”?

Desconhecia o trabalho do Hans Otte. Vamos começar por aí, como é que a sua música e este “O Livro Dos Sons” entrou na tua vida?
É engraçado começarmos por aí, por estares ligado ao discos, porque é curioso nunca te ter aparecido nenhum disco do Hans Otte. Mas não és caso único e também é por isso que estou a tocar a música dele. Em Maio de 2010 recebi um email de um amigo que tinha o título “Hans Otte” e dizia, no corpo do e-mail, “Para o caso de não conheceres”. E tinha em anexo o primeiro andamento deste “O Livro dos Sons”. Isso foi no dia 10 de Maio, ouvi aquele andamento e fiquei fascinada com a peça. É uma peça que oscila entre momentos muito parados, apenas com dois acordes alternados muito lentamente e uma parte de arpejados mais rápidos. No fundo, são esses dois polos: mais parado e mais movimentado. E fiquei fascinada com aquilo quando ouvi. Fiquei logo interessada no compositor, comecei a investigar quem era a pessoa e o que tinha feito mais. Encomendei logo partituras, discos e percebi, há uns dias, quando estava a rever esta história, que passado 20 dias, no dia 31 de Maio, eu já estava a escrever um email ao assistente deste compositor a pedir mais informações. O Hans Otte morreu em 2007 e até 2007 teve um assistente, o Ingo Ahmels, que publicou um livro importantíssimo, “Klang der Klänge = Sound of Sounds”. Foi a partir desse livro, que é bilingue, que foi essencial para eu perceber, porque não percebo alemão, que começou toda a minha investigação à volta do Hans Otte.

Tinhas vontade de tocar “O Livro dos Sons” desde então?
Sim, tinha a vontade de trazer a música cá a Portugal. E acabou por ser agora. Fico contente que seja agora por várias razões. No fundo, esta música fascinou-me porque é uma música muito enraizada na tradição da música clássica. Ele foi um compositor e pianista, nasceu em 1926 e morreu em 2007, teve como professor um pianista muito famoso, chamado Walter Gieseking, da escola do piano, aquela coisa clássica. E como professor de composição o Paul Hindemith. Paralelamente ao facto de ser compositor e pianista, foi durante muitos anos director da Radio Bremen. Nesse âmbito organizou muitos festivais de música, dedicados à música antiga e à música contemporânea; e contactou com muitos estilos musicais e compositores. Eles convidam muitos compositores de todo o mundo para virem a Bremen apresentar a sua música. Muitas encomendas, promoveu muitas estreias. Ou seja, ele teve toda a herança da música clássica na sua formação, depois contactou com o que se fazia na música e com isso fez o seu próprio estilo. É altamente informado, mas sentava-se ao piano e intuitivamente procurava onde os sons poderiam ir. Ele achava que a função do compositor não era decidir para onde os sons iam, mas sentar-se, tocar, ouvir e deixar que os sons dissessem para onde queriam ir.

Isso muda a forma como ele compunha?
Sim. Este lado permissivo dele, não ser um compositor que se impõe, eu sou o compositor, eu escrevo esta música, o interprete é o meu escravo, que vai fazer o que eu desejo. É uma atitude mais humilde. Eu improvisei, gosto disto. Faço uma partitura que está aberta, em que até o intérprete pode decidir quantas vezes vai repetir determinada secção, se vai tocar mais rápido ou mais lento. Apresenta esta proposta de partitura e cada intérprete vai interpretar de forma diferente. É fascinante esse lado do deixar ir. E do aceitar que cada pessoa vai ter uma leitura diferente da obra.

Quando conheces algo que te fascina, ficas logo tão investida?
Tenho um lado intuitivo muito forte. Uma coisa que reparei… isto de hoje em dia ser fácil de ver as datas. Só me apercebi há dois ou três dias, em 2010 foi quando fiz o segundo recital que veio dar origem ao “Satie. 150”. Portanto, no dia 25 de Abril fiz no CCB esse recital. No dia 10 de Maio recebi o email deste meu amigo com o Hans Otte. E passado vinte dias já estava neste filme do Hans Otte. Isto para dizer, muitas vezes tenho amigos que me enviam discos por email, links, coisas de música para ouvir, filmes para ver, não tenho vida para ler e ouvir tudo o que me sugerem. Gostava, mas não dá. Mas sou muito intuitiva. Já com o Satie, não sou, nem de longe nem de perto, uma expert do Satie. Não conheço a fundo as obras todas para piano, há muita coisa que eu não sei. Mas o que eu gosto, gosto. E a determinada altura fez sentido que eu partilhasse a sua música, a pusesse em relação com outros compositores. É uma intuição, é qualquer coisa que me diz que o caminho é por ali. Sem ter o peso de ser especialista, perceber se vale a pena. É ir vendo. No caso do Hans Otte houve esse primeiro impacto muito forte. Foi uma música e uma pessoa que foi vivendo comigo ao longo dos últimos 10 anos.

E que agora terás oportunidade de interpretar em palco.
Tinha esta vontade. Mas nem sabia se ia acontecer alguma vez tocar esta peça. Tinha a partitura. Tinha a gravação. Em termos discográficos é engraçado. Ele estreou a obra em 1982, escreveu entre 1979-82 e em 1983 gravou. E na altura, em 83, os CDs não tinham a duração de hoje. Gravou a obra e, quando foi para editar, tinha tempo a mais. Portanto, na mistura cortaram a duração de algumas peças para caber no formato do CD na altura. Felizmente guardaram as fitas e passado uns anos lançaram a mesma gravação em versão director’s cut, que é a versão completa. Ao mesmo tempo ele tem a partitura, tem a própria interpretação, se fosse alguém… um intérprete que ficasse, ele gravou assim, esta peça tem de ter esta duração. E de repente não. Foi feito para caber num CD mas a duração que ele preferia era mais longa. Mas ao mesmo tempo há gravações dele ao vivo em que demora menos tempo. Ele próprio ia oscilando nas suas interpretações. O que dá também margem para que cada pessoa que interpreta a peça, a interprete à sua maneira e não tenha de ser sempre igual.  No meu caso, eu não sei quanto tempo vai durar o concerto na Culturgest. Quando tenho tocado em casa, já chegou a demorar 75 minutos, já chegou a demorar 80 minutos. Depende dos dias. E do espaço que dou entre as peças. Depende de quanto tempo eu deixo o acorde final ressoar até levantar o pé para mudar de peça. Por mais que fosse mais confortável eu decidir quantas vezes vou repetir cada secção e estar controlada, e ir para o palco da Culturgest reproduzir uma coisa que eu sei que funciona. Eu não quis fazer isso, no próprio dia vou decidir quantas vezes vou repetir algumas secções, porque faço sempre de maneira diferente. Gosto de assumir que a obra está aberta.

No próprio dia ou no momento?
No momento do concerto. Não é no próprio dia, de manhã… [risos]. Porque, imagina, o primeiro andamento, foi esse que me fascinou, começa com a oscilação de dois acordes. Isto podes repetir quantas vezes quiseres, sendo que ele deixa a indicação que é para repetir várias vezes. Numa gravação repete 10, noutra 9, numa gravação fez muito mais rápido do que noutra. No geral tenho um tempo, uma velocidade. Por exemplo, se começo um diminuendo, um decrescendo, e a dada altura não consigo decrescer mais, se chegar ao mínimo nas oito vezes, não vou repetir mais duas vezes para fazer o que ele faz.

A tua formação é clássica. Aceitas hoje em dia mais facilmente o imprevisto?
Isto era uma coisa que era impossível eu fazer há uns anos, ir para um recital com coisas em aberto. Habituada a esta coisa da música clássica, estar tudo estudadinho, ir para o palco reproduzir o que estive a estudar em casa, era o correcto. Hoje em dia, tal como consigo ir para os meus concertos com o Luís Fernandes e saber que há partes da música em aberto e que vou estar a improvisar com base na estrutura da música, mas dentro de determinada secção estou à vontade. Isto é todo um processo que estou a fazer, e que é isso. Há uns anos era impossível. Não sabia ir para o palco sem saber o que iria tocar.

Vens da clássica, o que fazes com o Luís Fernandes está ligado à contemporânea/electrónica/música improvisada. Como música/pessoa sentes que há separação de público entre uma coisa e outra? Ou há um público Joana Gama que te segue para todo o lado?
Acho que há de tudo. Eu faço coisas tão diferentes, que é difícil as pessoas gostarem de tudo o que eu faço, no sentido em que são estilos muito diferentes. Quem gosta do meu recital do “Satie. 150” não vai gostar da ópera que eu fiz com o Vítor Rua porque é uma coisa mais non-sense e então não tem paciência para aquilo. Ou quem gosta do meu trabalho com o Luís Fernandes acha que as “Viagens Na Minha Terra” são uma seca porque é música clássica. Eu gosto desta diversidade. Se por um lado desejasse que a minha vida fosse muito mais simples, ser tipo uma banda que lança um disco e fica dois anos a rodar um disco e tenho uma vida santa, no fundo, o concerto está estudado e podes fazer outras coisas na vida. Já percebi que a minha essência não é essa, é estar envolvida em projectos muito diferentes e  que, na verdade, me enriquecem muito a todos os níveis. Sei que o meu trabalho nas artes performativas melhorou muito os meus concertos. A própria dimensão do estar em palco, a ideia de mise-en-scène. Quando lancei o “Satie. 150” fiz um recital que tinha um desenho de luz, do Frederico Rompante, pensei porque é que não haveria de ter um desenho de luz fixe num concerto de música clássica? Era uma coisa que nunca teria pensado se não tivesse trabalhado com artes performativas, com electrónica. Isso no fundo vai enriquecendo tudo.

O que te fez sair da clássica e experimentares outras formas de música com o piano?
Tem a ver com intuição e impulsos. Há algo que vai atrás. Quando era miúda fiz ballet. Essa ideia das artes performativas vem comigo desde miúda. Tocava piano e fazia ballet, adorava fazer ballet. Há uns anos, em 2007, tinha uns amigos que estavam a ensaiar uma peça, que iam apresentar no Novos Actores, que era um concurso que havia no São Luiz. A peça era baseada no “Annie Hall” do Woody Allen. Estava em casa de um deles, de quem era amiga. E tinha tocado no Jardim de Inverno, e sabia que tinha um piano. E disse, se quiserem levar uma pianista, só para serem excêntricos, eu posso ir convosco e toco na peça. Eles acharam piada. Correu super bem. Eles foram seleccionados. Apresentámos a peça no Dia Mundial do Teatro, o Jorge Salaviza gostou imenso – até foi uma das coisas que relembrámos com a sua morte. Fizemos a peça em vários sítios fora de Lisboa. Aquilo ainda andou a rodar. Naquele momento, consegui tocar em palco obras que eram super difíceis, e que se eu estivesse sozinha a tocar em palco, no contexto recital, iria ficar super nervosa. Mas como estava com amigos e aquilo era uma comédia, estava super à-vontade. Logo a seguir, fui ver um espectáculo da Tânia Carvalho chamado “Uma Lentidão Que Parece Uma Velocidade”, em que a Tânia tocava piano e dançava. Quando vi a peça, isso mexeu comigo. Eu tinha esta coisa da dança, que tinha ficado adormecida. E ver a Tânia a conjugar as duas coisas à minha frente, foi do género: é possível. Na minha onda pró-activa, escrevi à Bomba Suicida e pedi uma reunião com a Tânia Carvalho; se ela quisesse fazer uma coisa com uma pianista, eu teria muito gosto. Mas nunca pensei que ela me pusesse a dançar. Ela depois teve a ideia de fazer uma coreografia, era um solo para mim, “Dança Ricercata”, em que eu tocava a “Musica Ricertata” do Ligeti mas com uma coreografia envolvida. Estas duas peças foram o ponto de partida, que mostraram essa possibilidade de tocar música de que eu gostava, mas fora de um contexto puramente musical. E isso foi atraindo outras coisas.

Regressando ao Hans Otte. Como surgiu a oportunidade de tocares na Culturgest?
Havia esta ideia desde 2010. Em 2013, Ingo Ahmels e eu montámos um projecto que apresentámos ao Goethe-Institut, que na altura se mostrou interessado, mas que não pôde acontecer por várias razões. Sendo que o Goethe sempre apoiou muito o Hans Otte: este “O Livro Dos Sons” foi encomendado pelo Goethe-Institut de Nancy e ele fez vários concertos pelo mundo inteiro apoiado pelo Goethe-Institut. Há mais de um ano o Pedro Santos perguntou o que eu estava a fazer, eu falei-lhe disto, que tenho este sonho… eu não gosto de falar em sonhos. Sonho é algo que queres muito que se realize. Se isto não acontecesse, eu estava bem à mesma. Fico contente que aconteça, é uma coisa que eu gostava. Mas não é dar cabo do resto da minha vida para que isto acontecesse. Falei-lhe, ele não conhecia, enviei-lhe o disco, ele ficou fascinado. Isto vai sendo assim, de fascínio em fascínio. Em conjunto, falámos com o Goethe para despoletar novamente esta ideia de trazer a música do Hans Otte a Portugal. A ideia para este ano era fazer uma evento maior, no fundo apresentar a obra artística alargada de Hans Otte. Além da música para piano, ele fez instalações sonoras. Há outro ciclo de piano, chamado “O Livro das Horas”, que tem uma componente extra-musical, com texto e desenhos. A ideia teria sido apresentar algo maior, mas devido à pandemia, tivemos de perceber o que deveríamos fazer. Percebemos que dava para manter o concerto na Culturgest como um evento separado e dar um pontapé de saída para finalmente apresentar esta obra em Portugal. E o Pedro Santos teve a ideia muito boa de pôr seis músicos de Lisboa a trabalhar a obra de Hans Otte.

Gostavas de dar continuidade ao “O Livro dos Sons”? Ou seja, que não fosse só um concerto na Culturgest?
Sim, sim, a minha ideia é fazer isso. O facto deste concerto estar isolado é uma questão pragmática, haveria este evento maior, que estava pensado e nesse contexto eu iria tocar mais vezes. Isso não vai acontecer e no meio disto eu tinha outros projectos em itinerânci. Vou fazer este concerto, vou dedicar-me a outros projectos, mas a minha ideia é voltar a pegar em “O Livro dos Sons” e tocá-lo mais vezes. A ideia é continuar a trabalhar a obra e continuar a apresentá-la cá, quero aguçar o apetite e fazer esta primeira apresentação.

Há pouco falaste no carácter muito interpretativo de “O Livro dos Sons”. Terias interesse em editar a tua interpretação?
Gostava de editar, mas não agora. No mínimo, gravar daqui a um ano. Preciso de tocar algumas vezes a obra em público. Já vivo com a obra há muito tempo, como ouvinte. E não como potencial pianista que iria tocar a obra. Sempre ouvi a obra de maneira descontraída, sem estar ali a analisar cada peça individualmente. Tanto é que, quando eu comecei a estudar a sério há uns meses, havia umas que eu conhecia melhor de ouvido do que outras. Havia umas, é aquela coisa, quando estás a ouvir um disco muitas vezes, há umas a que não prestas muita atenção, há músicas de que gostas muito e há uma que passa ali um bocado despercebida. Não é que eu conhecesse a música de fio a pavio antes de a começar a estudar ao piano, mas sempre senti esta coisa de em geral gostar da peça, gostar de a ouvir e ter esta ideia de a tocar. Era uma peça que faria sentido gravar, mas sem pressa. Mas sempre fiz isto ao contrário, sempre rodei muito o programa antes de o gravar. O “Satie. 150”, estive um ano a tocar a peça antes de a gravar; o “Arcueil” também. O “Viagens Na Minha Terra” já o tocava há três anos, quando o gravei. Este, para ficar no ponto, precisava de uns dez anos de público para ser gravado. Na música clássica há muito este peso da herança, dos grandes pianistas, dos grandes compositores, é tudo em grande e sentes-te minúsculo. E o que eu sinto com o Hans Otte, é que ele é enorme sem espezinhar os comuns mortais. Ele compôs a peça entre 1979-82, gravou em 1983 e esteve a tocá-la durante mais de 10 anos em público. Quando ele gravou a obra em 1983, andava há um ano a tocar a peça, mas tinha andado anos e anos a pensar nela, a tocá-la diariamente ao piano, a fazer os seus esboços e rascunhos. Quando toco a peça, sinto que não a toco tão bem como o Hans Otte toca. Oiço-o a tocar e penso, bem, isto é absolutamente maravilhoso, a maneira como ele toca. Porque obviamente é orgânico, foi ele que a compôs, andou anos e anos a pensar naquilo, a tocar aquilo. Mas isso não me faz sentir mal. Uma vez que a interpretação dele é uma coisa, é belíssima e eu admiro. E outra coisa sou eu, que comecei a estudar a peça há poucos meses, sou quem sou, toco como toco, não sinto que isso se anule. Sinto que a música do Hans Otte é muito humana. Que aceita como cada pianista é. Ele próprio adverte isso, no prefácio da partitura diz que há uma série de decisões que devem ser tomadas pelo intérprete consoante as suas capacidades técnicas, de imaginação. Ou seja, capacidade artística. Há pessoas que irão tocar isto que são mais inexperientes ou que se calhar não vão repetir tantas vezes. Há esta aceitação por parte dele que é bonita.

Isto é uma pergunta ingénua: como é que alguém que compõe consegue projectar isso no intérprete? De sentir que a sua peça é maleável a isso.
Tens uma sonata do Beethoven, está escrita na partitura e não tem muita margem de manobra. Há uma determinada velocidade em que os pianistas tocam. As dinâmicas estão lá escritas, se é mais forte, se é mais piano. Há um estilo com que se toca aquela música que é mais ou menos semelhante. Mas ouves gravações de pianistas diferentes e parecem obras diferentes, as pessoas tomam algumas liberdades que fazem com que as interpretações sejam diferentes e haja interpretações diferentes para determinado repertório. Há um concerto do Ravel, o concerto solo, há uma interpretação do pianista italiano Arturo Benedetti Michelangeli, que é idolatrado pelos melómanos, porque as pessoas acham que aquela interpretação é mesmo belíssima. Eu também acho, mas há milhares de pianistas que tocam aquela peça no mundo. Por alguma razão aquela interpretação é especial. Depois há peças como esta, ou até noutro estilo aleatório, como o John Cage, de haver um dado do acaso que entra no jogo. No caso do Hans Otte há essa particularidade, no meio da partitura haver uns sinais, em que um sinal quer dizer repetir algumas vezes, outro sinal dizer repetir muitas vezes. E essa interpretação do algumas e do muitas é completamente diferente de pessoa para pessoa. Ele deixa que a pessoa sinta quantas vezes é que tem de repetir essa parte. Um aluno mais novo, mais apressado, que não tem tanta paciência, estar a repetir dez vezes o mesmo grupo é uma seca, vou só repetir quatro. E está bem, ele sente que é assim. E é assim que deve ser. É sentir que fez uma música que é impermeável a coisas que, em princípio, pudessem ser descabidas. Quer repitas quatro ou dez, a música é a mesma. Ele é o exemplo disso. Tocar de maneiras diferentes, consoante as ocasiões, dá-te essa tranquilidade de pensar que podes tomar essas liberdades e estar bem.

*A propósito de “O Livro dos Sons”, a Culturgest convidou seis músicos de Lisboa a descobrir e interpretar “O Livro dos Sons”: Norberto Lobo, Helena Espvall, Bernardo Álvares, Violeta Azevedo, Pedro Melo Alves e Joana da Conceição. A estreia acontecerá no dia 10 de Outubro, pelas 21h00, no site da Culturgest, e ficará disponível para visionamento nas plataformas online da sala.

fotos por Vera Marmelo