Private Parts
Robert Ashley
Numa década onde a proliferação de reedições permitiu uma espécie de reentrada de música nova nos ouvidos, que criou e facilitou tendências, mostrou os equívocos entre o passado, presente e o futuro, é particularmente incómodo – no melhor dos sentidos – notar que a música de Robert Ashley ainda causa perplexidade. A voz, a clarividência das acções para que a voz remete, concretizam a maior e mais bela inocência que a música pode perpetuar. Originalmente composto em 1977, no Mills College, “Private Parts” – que não estava disponível em vinil desde a sua edição original, em 1978 – é um portal de muitas camadas, conduzido pelas narrativas palpáveis de Robert Ashley, enquanto uma composição consciente, quase imperceptível, por vezes, se ouve ao fundo, formando um cenário para todas as acções da voz de Ashley. Importa menos o que Ashley diz, importa o que se capta, as sensações, as ferramentas para entrar num mundo abstracto e carregar com ele às costas. A música de Robert Ashley é uma constante chamada de atenção, uma visão muito cromática de um mundo que ainda hoje vivemos: e é o mundo de hoje, o presente, que se adapta à música de Ashley e não o contrário. O ouvinte sai de um qualquer lugar para viver estas “óperas” que são portais para todas as realidades. Essa capacidade de ser o que se quiser é uma das maiores virtudes de Robert Ashley: meditação, disrupção, reflexão, new age ou o som de uma vida. Poucas obras têm o dom de transformar tudo o que se sente depois de serem ouvidas, a discografia de Robert Ashley é um estado de felicidade que se leva para qualquer lado. Fica-se mais iluminado, feliz, rico. “Private Parts” é um dos maiores portais para um outro estado de consciência, livre do tempo, das pressões do presente, do passado e do futuro. Não é por conveniência que “Private Parts” é um disco obrigatório. É porque a vida é muito melhor com um álbum assim.