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Mesmo sem o contexto certo explicado em profundidade, o som transmite bem o espírito de agitação cultural de que estas sessões se revestiam. Em Novembro de 1978, quando aconteceu a actuação ao vivo que é objecto da presente edição, o Anar Band estava cristalizado em Jorge Lima Barreto (sintetizador ARP Odyssey) e Rui Reininho (guitarra Ibañez de dois braços), uma parceria então com dois anos e meio, e acrescentado da presença e voz de E.M. de Melo e Castro, que aqui se apelida de poeta (porque é a sua poesia que escutamos no disco) mas cuja intervenção criativa foi mais vasta. Não apenas no âmbito da poesia e da ligação entre artes, mas também no campo da engenharia têxtil e, ao seu modo, na permanente agitação de mentes e consciencialização política.
Boa evidência na última das peças incluídas no disco, que identifica profissões que primeiro são estanques e depois se interligam, mostrando a interdependência entre áreas laborais diferentes, mudanças de posição, capacidade de intervir em áreas alheias à formação de base. Opera-se através das palavras uma transformação na sociedade, embora em duas instâncias se reforce a ideia de que o lucro vai sempre parar às mãos do industrial.
Era esse estado de coisas que se procurava mudar, um mal-estar económico e social que o 25 de Abril veio definitivamente revelar, quando as vozes já podiam ser escutadas alto e em público. Cada um ao seu modo, todos os intervenientes nesta gravação eram descrentes na estruturação da sociedade tal como esta se apresentava.
Através dos seus livros e escritos na imprensa, Jorge Lima Barreto insinuava-se no meio crítico e artístico nacional, sobretudo na área do jazz, desde o final dos anos 1960. De livre vontade e involuntariamente, coleccionou inimigos que apontava pelos nomes, gente que na sua escala contava como reaccionária, gente que atrasava o progresso, a mistura, a vanguarda, atrasava até o caos a partir do qual se criam novas formas e atitudes.
Rui Reininho viveu em directo, e na pele, o inconformismo e incompreensão, desde muito novo. A sua tendência natural para a anarquia e o desconcerto revelava-se nas roupas, atitude pública, performances "na vida real", não-alinhamento convicto. Tal como JLB,e mesmo os dois em conjunto, divertia-se a provocar os extremos: maoístas de um lado, reaccionários do outro. Traduziu livros carregados de Esquerda e juntou-se oficialmente ao pré-existente grupo Anar Band precisamente no concerto em que um pato, um cisne, um ganso (um deles) foi lançado para o palco na Faculdade de Economia do Porto, em Maio de 1976.
Tal como os extremos se tocam, digamos que os estranhos se conhecem. Muitas associações proveitosas que geraram eventos como este concerto de Anar Band + Melo e Castro na Cooperativa Árvore fizeram-se no improviso do submundo pré-Revolução, quando se procuravam almas gémeas capazes de alimentar em conjunto uma rede de sobrevivência anímica a precisar de constante reafirmação.
Mas mesmo no Pós, o submundo estético continuou a sê-lo, ainda que já na superfície da agitação política e social do PREC, na camaradagem de quem se reconhecia do mesmo lado, agora tudo às claras, e a arte produzida nesse submundo chegou às Bienais, ao estrangeiro, a acontecimentos de rua que, em liberdade e com naturalidade, se multiplicaram.
Só que o vento passou, e o que era "estranho" permaneceu "estranho", frequentemente prejudicado pelas forças democráticas do mercado e dos media. Em relação aos tempos de ditadura, com certeza mais espaço para intervenção, mais liberdade de movimentos, mas semelhante falta de elasticidade em mentes que decidiam assuntos, dinheiros, exposições, destaques.
Este disco mostra uma acção concreta, um instantâneo da agitação, algo a que chamamos sem pudor, até por certa coincidência cronológica, um activismo punk que permitiu que duas pessoas sem formação musical académica (Barreto e Reininho) fizessem e publicassem música. O LP de Anar Band, que corresponde grosso modo a esta fase musical, fora editado em 1977. Na presente actuação, evidentes também alguns códigos da música improvisada: a escuta mútua que se detecta nos olhares captados na filmagem original da RTP, os compassos de espera até ser conveniente intervir de novo (no caso de Melo e Castro) ou mudar o tom no sintetizador e na guitarra (Anar Band); o modo como Reininho toca a guitarra.
Fascinante e alienante.